Deuses caprichosos e a neutralidade religiosa

Roberto Vargas Jr.
4 min readJul 12, 2021

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Há um pregador bastante famoso por estas plagas que certa vez deu uma entrevista e, embora seus termos obviamente fossem bem outros, dizia coisas mais ou menos assim:

"Eu já tive muito poder. Acontece que eu estava embriagado com este poder. Então me perguntam como me sinto quanto minha queda, desejam arrancar algum remorso ou arrependimento de mim. De que eu teria que me arrepender? Agora eu estou livre. Eu era escravo do pecado quando estas pessoas moralistas me elogiavam e me estimulavam no uso do poder que eu tinha."

Classicamente, é assim mesmo. Temos três grandes tentações neste mundo: o poder, o dinheiro e o sexo. O triste é que este afamado pregador se libertou de uma destas tentações, a do poder, apenas para se lançar a outra, a do sexo.

Vi recentemente a animação "Sangue de Zeus", uma série em oito episódios (disponível na Netflix). Animação adulta, certamente, não algo para crianças. Gostei bastante.

O contexto é bem conhecido, utilizando-se dos caprichosos deuses do Olimpo. A história gira em torno de irmãos gêmeos. Só que um é concebido filho de Zeus e outro de um rei. Há o ciúme de Hera por mais este bastardo e a briga do casal influenciará toda a narrativa.

Há trechos bastante interessantes, especialmente nos episódios finais. Num deles há um sacrifício do filho de Zeus que ao cristão poderá lembrar o sacrifício do Filho de Deus. Uma lembrança vaga, é verdade, mas presente.

Em outro trecho as moiras (que tecem o destino dos homens) dizem que o livre-arbítrio e o destino caminham juntos. Lembrou-me aquele trecho que tanto gosto da Dama Verde de Lewis em Perelandra. Um trecho que as gentes costumam encontrar arminianismo e eu vejo calvinismo pleno:

Pensava — disse ela, que era transportada pela vontade daquele que amo, mas agora vejo que caminho com ela. Pensava que as coisas boas que Ele me enviou me arrastavam para dentro delas como as ondas levantam as ilhas; mas agora vejo que sou eu quem nelas mergulha, pelas minhas próprias pernas e braços, como quando vou nadar. Sinto como se estivesse a viver nesse teu mundo sem teto por cima, onde os homens caminham indefesos sob o céu nu. E o encanto com terror também. O nosso próprio ser a caminhar de um bem para outro, andando ao lado d’Ele como Ele Próprio andaria, sem mesmo dar as mãos. Como é que Ele me fez tão apartada d’Ele? Como é que entrou no Seu espírito conceber tal coisa? O mundo é tão mais vasto do que eu pensava. Pensava que nós seguíamos caminhos já feitos, mas parece que não os há. O nosso ir faz o caminho. (LEWIS, C.S. Perelandra. Mem Martins: Publicações Europa-América)

Mas dizia eu que a história gira em torno de irmãos gêmeos, o filho de Zeus e o filho do rei. E não é o filho de Zeus que nos traz melhor reflexão, e sim o filho do rei.

Ele vive proscrito, porque seu tio usurpou seu trono. Entretanto, ele encontra um corpo de um gigante e se alimenta dele. Isso o transforma em um demônio. Um demônio que, acima de tudo, é consumido pelo desejo de vingança contra seu tio.

Hera se aproveita disso e, cheia de enganos, propõe satisfazer o desejo do seu coração, exigindo, no entanto, que ele sirva de instrumento a seus propósitos e a adore, o que ele faz sob o poder dela. Relutantemente, pois.

Relutantemente porque ainda mais visceral que o desejo de vingança é seu desejo por viver de forma autônoma, livre do capricho dos deuses.

Em dado momento, tanto Zeus como seu filho lhe oferecem redenção, que ele rejeita. Ainda, no fim, ele morre em sua insistência por autonomia e vai ao Hades.

Hades então mostra a ele uma parte de sua habitação homônima e afirma que o tormento é ainda pior do que o que ele vê. Então, mais numa repetição da oferta de Hera que da oferta de Zeus e seu filho, Hades oferece novamente redenção: "se, prostrado, me adorares". O infeliz percebe, finalmente, que os deuses e seus caprichos são inevitáveis!

O que há de interessante nisso é que há muito do “homem moderno” neste personagem, com seu brado “nenhum deus, nenhum senhor”, e que, entretanto, não consegue se ver livre de sua natureza indelével e inexoravelmente religiosa e adoradora.

Mesmo quando o personagem, ou o famoso pregador, ou todo e qualquer homem consumido por seu desejo por autonomia, mesmo quando qualquer um de nós pensa se livrar de um deus - seja o Vivo e Verdadeiro, seja um falso - não fazemos mais do que cair - e voluntariamente! - nas mãos de outro.

Se atentarmos bem, veremos que não são os deuses os caprichosos. Os ídolos somos nós mesmos que os fazemos. O capricho vem da idolatria de corações que se desejam autônomos.

A neutralidade religiosa é, pois, uma quimera!

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